A American Association of Feline Practitioners (AAFP) publicou em janeiro de 2020 no Journal of Feline Medicine and Surgery o último Guideline a respeito das retroviroses felinas, abrangendo o vírus da leucemia felina (FeLV) e o vírus da imunodeficiência felina (FIV). O documento é uma atualização do Guideline anterior sobre retrovírus felino da própria AAFP de 2008 e traz os conhecimentos atuais sobre diagnóstico, prevenção e manejo de infecções por retrovírus em felinos.
Neste artigo iremos discutir sobre alojamento, cuidados médicos e outros assuntos que envolvem o manejo do animal infectado. Acesse nossos outros artigos voltados ao novo guideline sobre FIV e FeLV para saber mais:
Longevidade
Animais infectados por FIV possuem expectativa de vida variável, podendo viver tanto quanto não infectados. O monitoramento de longo prazo de uma casa com 26 pacientes com infecções endêmicas de FeLV e FIV revelou que todos aqueles progressivamente infectados com FeLV morreram dentro de 5 anos do diagnóstico, mas a infecção por FIV não afetou a sobrevivência no mesmo período.
Um grande estudo comparou a sobrevivência de mais de 1000 pacientes infectados por FIV com mais de 8000 não infectados usados como controle, os animais possuíam idade e sexo correspondentes; a idade média no estudo foi de 5 anos. Desconsiderando aqueles que sofreram eutanásia em até um ano após o primeiro diagnóstico, o tempo médio de sobrevivência após o primeiro teste foi de 4,9 anos para FIV positivos e 6,0 anos para controles negativos.
O estudo também comparou mais de 800 animais infectados por FeLV com 7000 controles correspondentes; a idade média dos gatos no estudo foi de 2 anos. Desconsiderando aqueles que sofreram eutanásia em até um ano após o primeiro diagnóstico, o tempo médio de sobrevivência após o diagnóstico foi de 2,4 anos para gatos FeLV infectados e 6,3 anos para controles negativos.
A alta taxa de eutanásia no primeiro ano após o diagnóstico de ambos os retrovírus se deve a condições agravantes da doença ou à eutanásia de gatos saudáveis infectados por retrovírus para fins de controle de infecção.
Um grande estudo de prevalência de FIV e FeLV em animais que possuem donos foi realizado na Alemanha, um subconjunto de 100 espécimes (19 FIV positivos, 18 FeLV positivos, 63 não infectados) foi avaliado quanto ao tempo de sobrevivência. Não foi detectada diferença significativa no tempo médio de sobrevivência de espécimes infectados com FIV (785 dias) em comparação com não infectados (620 dias). No entanto, o tempo médio de sobrevivência daqueles infectados por FeLV (312 dias) foi significativamente menor em comparação com não infectados (732 dias).
Outro estudo comparou o tempo de sobrevivência de 76 animais infectados com FIV e 444 não infectados na Austrália. A sobrevivência daqueles infectados com FIV não foi significantemente diferente dos não infectados.
Em uma avaliação de registros médicos de gatos de abrigo classificados como infectados por FIV (n = 63), progressivamente infectados por FeLV (n = 22), co-infectados (n = 4) ou não infectados (n = 11), a longevidade foi semelhante naqueles infectados por FIV em comparação com não infectados. Animais com infecção progressiva para FeLV e co-infectados com FeLV e FIV tiveram expectativa de vida significativamente menor, bem como uma maior incidência de linfoma.
Esses dados demonstram que pacientes infectados por retrovírus, especialmente os infectados por FIV, podem experimentar longevidade normal desde que tenham os cuidados adequados. O diagnóstico de uma infecção por retrovírus não deve ser o único critério para eutanásia, os tutores devem ser educados com detalhes sobre as opções de tratamento de animais infectados; além disso, os donos devem estar cientes da ocorrência de resultados falso-positivos e o clínico veterinário deve oferecer testes adicionais sempre que possível.
Gatos infectados por retrovírus estão sujeitos às mesmas doenças que acometem gatos livres dessas infecções. Uma doença diagnosticada em um animal infectado por retrovírus pode ou não estar relacionada à infecção por retrovírus.
No entanto, mesmo assim o conhecimento do status retroviral em tais animais é importante porque a presença de uma infecção por retrovírus impacta nos cuidados ao longo prazo.
Alojamento em ambiente fechado
Há benefícios em alojar pacientes infectados por retrovírus em ambientes fechados e permitir o acesso ao exterior apenas em recintos seguros.
Os benefícios incluem: Exposição reduzida a outras doenças infecciosas, risco reduzido de trauma ou lesão e capacidade limitada de transmitir infecção por retrovírus a outros pacientes. Boa alimentação e criação acompanhadas de um estilo de vida enriquecido para animais confinados em ambientes fechados, são essenciais para manter boa saúde.
Cada caso deve ser avaliado individualmente, pois alguns gatos que vivem ao ar livre não se adaptam a um estilo de vida confinado dentro de casa. O estresse de uma mudança radical no estilo de vida pode ter efeitos médicos e comportamentais prejudiciais.
Em algumas circunstâncias, pode ser melhor permitir que os animais infectados por retrovírus tenham acesso ao ar livre, de preferência dentro de um recinto seguro como um pátio telado. Pacientes que não apresentam comportamentos de alto risco (cio ou histórico de brigas) apresentam pouco risco de transmissão de doenças para outros.
Animais infectados por FIV em ambientes fechados
Com os devidos cuidados e manejo ambiental, animais infectados pelo FIV podem viver por muitos anos. Em um estudo de 22 meses, gatos infectados pelo FIV que viviam em casas sozinhos ou com outro companheiro foram comparados com gatos infectados pelo FIV que viviam em um santuário com alta densidade populacional.
O grupo que vivia no santuário apresentou maior probabilidade de desenvolver sinais clínicos relacionados à sua doença, com 51% deles morrendo durante o período do estudo, sendo a causa principal desenvolvimento de linfoma.
Aqueles infectados pelo FIV que viviam em domicílios de baixa população não apresentaram sinais clínicos durante o período do estudo e houve apenas uma morte, devido à cardiomiopatia hipertrófica, presumivelmente não relacionada à infecção.
A conclusão deste estudo foi que o manejo e as condições de moradia impactam o desenvolvimento de sinais clínicos, progressão da doença e tempo de sobrevivência em animais infectados pelo FIV.
Animais infectados por FeLV em ambientes fechados
As condições de alojamento também afetam os resultados para pacientes infectados por FeLV. Em um estudo realizado em dois santuários de resgate de gatos, foi alojado um grupo infectado por FeLV com outro não infectado, sem separar os animais doentes dos saudáveis, observou-se que a prevalência de FeLV foi 20 vezes maior do que na população geral de pets.
Os pacientes não só tinham maior probabilidade de serem infectados nos santuários, mas também tinham maior probabilidade de desenvolver a forma progressiva da infecção, levando a resultados piores a longo prazo.
O benefício do alojamento com baixa densidade de felinos pode ser atribuído aos menores níveis de estresse e co-infecções. Sempre que possível, animais infectados com retrovírus devem ser alojados em ambientes de baixa densidade onde os fatores estressantes são reduzidos e os cuidadores podem observar o estado de saúde do animal com atenção e cuidado.
Cuidados médicos preventivos
É recomendado que animais infectados por FeLV ou FIV realizem exames preventivos de saúde pelo menos a cada 6 meses para detecção de alterações em seu estado de saúde; os veterinários devem manter um histórico detalhado para ajudar a identificar alterações e também devem realizar um exame físico completo a cada visita.
Uma atenção maior deve ser prestada à cavidade oral uma vez que doenças dentárias e orais são mais comuns naqueles infectados por retrovírus, os linfonodos também devem ser avaliados quanto a alterações no tamanho e forma. Deve-se examinar de forma completa os segmentos anterior e posterior de todos os pacientes, além disso a pele deve ser examinada de perto para evidências de infestações parasitárias externas e doenças fúngicas.
Animais infectados por retrovírus devem receber prescrição de profilaxia apropriada para parasitas, tanto internos quanto externos. Em áreas onde a dirofilariose é comum é indicado a quimioprofilaxia mensal. Seguir as recomendações para controle de parasitas de rotina da Companion Animal Parasite Council (CAPC; capcvet.org) reduzirá o risco de infecção secundária e do surgimento de outra doença nos animais potencialmente imunossuprimidos.
O bom balanceamento nutricional é essencial para manter a boa saúde desses felinos. Uma dieta nutricionalmente balanceada e completa, apropriada para o estágio de vida do animal deve ser fornecida. Carne crua e laticínios crus devem ser evitados uma vez que o risco de doenças bacterianas e parasitárias transmitidas por alimentos é maior naqueles potencialmente imunossuprimidos.
Avaliações nutricionais periódicas devem verificar a ingestão de alimentos, o escore de condição corporal (ECC), o escore de massa muscular (EMM) e a qualidade da nutrição para garantir uma melhor saúde ao animal e alertar o clínico sobre problemas de forma precoce.
Tendências inesperadas de queda no peso corporal, baixas no ECC ou no EMM devem levar o clínico a investigar mais. Em qualquer animal, as alterações inesperadas no peso corporal podem preceder outros sinais de doença clínica dentro de meses ou até anos.
Vacinação e exames indicados para animais infectados por FIV e FeLV
Um exame de sangue completo deve ser realizado anualmente para aqueles infectados por FIV e pelo menos a cada 6 meses para os infectados por FeLV por causa da maior frequência de distúrbios relacionados ao vírus em pacientes infectados por FeLV.
Uma análise bioquímica sérica e um exame de urina completo devem ser realizados anualmente para pacientes infectados por FeLV e FIV. Amostras de urina devem ser coletadas por cistocentese para que culturas bacterianas possam ser realizadas, se indicado. Exames fecais devem ser realizados conforme as necessidades.
A utilização de vacinas e os intervalos de imunização para gatos saudáveis com infecção por FeLV ou FIV devem ser baseados em avaliações individuais usando as diretrizes de vacinação da AAFP como base. A vacinação geral não deve ser evitada em gatos com infecção retroviral porque eles podem desenvolver uma doença mais grave relacionada ao vírus da panleucopenia e infecções do trato respiratório superior após exposição natural (sem a imunização por vacina) quando comparados com não infectados.
A vacinação contra raiva deve seguir as regulamentações locais. Há pouca evidência para sugerir que vacinas de vírus vivos atenuados são um risco em animais infectados por retrovírus além do que a resposta de animais assintomáticos infectados por retrovírus pode ser semelhante à de não infectados.
Machos e fêmeas não castrados devem ser castrados para reduzir o estresse associado ao ciclo estral e comportamentos de acasalamento. Animais castrados também são menos propensos a vagar para longe de casa e interagir agressivamente com outros gatos.
Cirurgias e cuidados pré-operatórios
Em pacientes saudáveis, infectados por retrovírus, os procedimentos cirúrgicos devem ser usados conforme necessário para manter a saúde e controlar a doença. Animais infectados por retrovírus devem receber a mesma qualidade de anestésico, e os mesmos cuidados cirúrgicos e operatórios dados a todos os pacientes. A avaliação pré-operatória, incluindo testes laboratoriais, deve seguir o mesmo padrão de não infectados.
Assim como para todos os gatos, o uso de antibióticos perioperatórios deve ser reservado para aqueles indivíduos com evidências claras de imunossupressão e/ou aqueles submetidos a cirurgias onde o risco de contaminação bacteriana é moderado a alto.
Tratamento de doenças secundárias
O tratamento médico do animal clinicamente doente infectado por retrovírus deve ser baseado em uma revisão completa do estado clínico do paciente, dos objetivos do tutor e dos tratamentos disponíveis e sua respectiva segurança ou toxicidade relativa. O paciente deve ser avaliado primeiro para determinar se a doença não está relacionada à infecção por retrovírus, se é secundária à imunossupressão ou se é uma causa direta da infecção retroviral.
Os retrovírus podem contribuir para qualquer doença seja como um efeito direto da infecção viral ou um efeito secundário por meio da imunossupressão. A avaliação cuidadosa de cada paciente irá ajudar o clínico a determinar a etiologia do problema e o tipo de cuidado necessário.
Animais infectados com FeLV ou FIV apresentam risco aumentado de desenvolver neoplasia, supressão da medula óssea, doença neurológica, inflamação oral e infecções secundárias à imunossupressão. Pacientes infectados por retrovírus com gengivoestomatite grave provavelmente terão melhores resultados a longo prazo com a extração completa das raízes dos dentes em vez de tratamento médico.
A anemia em gatos infectados com FeLV pode ser devida a várias causas, incluindo o efeito direto do vírus na medula óssea, infecções secundárias (por exemplo, infecções com espécies de Mycoplasma) e outros mecanismos.
Embora o estado da doença em pacientes humanos com infecção por HIV seja avaliado com vários marcadores, tais marcadores não se mostraram confiáveis em gatos com infecções retrovirais. A perda de peso pode estar indiretamente relacionada à infecção por retrovírus, contudo também há diversas outras doenças associadas à perda de peso.
Terapia direcionada
Terapias antirretrovirais combinadas altamente ativas são a base do tratamento em pacientes infectados pelo HIV e resultam em tempos de sobrevivência mais longos e melhor qualidade de vida. Infelizmente, poucos estudos controlados de longo prazo em gatos infectados mostraram benefícios duradouros do uso de medicamentos antivirais.
Os medicamentos disponíveis para tratar animais infectados por retrovírus são limitados e tendem a serem menos eficientes em pacientes felinos quando comparados com pacientes humanos. Muitos desses medicamentos exigem uso impraticável a longo prazo, são caros e vêm acompanhados de uma série de efeitos colaterais tóxicos que limitam sua utilidade.
A Zidovudina (azidotimidina; AZT) é um dos poucos compostos antivirais usados em infecções por FeLV e FIV. O medicamento pode reduzir a carga viral e melhorar o estado imunológico e clínico. Em casos em que se pensa que a doença clínica é atribuível à infecção retroviral, o AZT pode ser administrado de 5~10 mg/kg por via oral a cada 12h. A dose mais alta deve ser usada com cuidado em gatos infectados por FeLV porque efeitos colaterais podem se desenvolver, principalmente anemia não regenerativa.
Interferons são frequentemente usados em pacientes infectados por retrovírus como antivirais e imunomoduladores na esperança de que a carga viral possa ser reduzida e a recuperação de doenças clínicas associadas possa ser facilitada. Infelizmente, ensaios clínicos sobre esses medicamentos em gatos infectados por retrovírus não conseguiram confirmar os benefícios terapêuticos.
Um estudo usando o interferon ômega felino, que está disponível em alguns países, mostrou uma maior taxa de sobrevivência após 9 meses em pacientes infectados por FeLV tratados com interferon quando comparado com um grupo de controle infectado por FeLV tratado com placebo. Outros estudos forneceram evidência de melhora clínica em animais infectados por FIV ou FeLV, contudo esses efeitos benéficos podem estar relacionados somente ao tratamento de infecções secundárias.
Nenhum estudo controlado usando interferon felino oral ômega em animais infectados por FIV ou FeLV foi divulgado até o momento da publicação do Guideline da AAFP.
Referências
- AAFP, Feline Retrovirus Testing and Management Guidelines. 2020; doi: 10.1177/1098612X19895940