A Dra. Allyson Berent (DVM, DACVIM), da equipe de Interventional Endoscopy do The Animal Medical Center (Nova York, EUA), apresentou novas soluções para incontinência urinária refratária em cães no 50º Congresso da WSAVA
Rio de Janeiro (WSAVA 2025) — A incontinência urinária canina, condição multifatorial que abala a qualidade de vida do paciente e o vínculo com a família, ganhou uma vitrine de soluções práticas e avançadas no 50º Congresso da WSAVA, realizado no Rio de Janeiro. Em conferência didática e centrada na prática clínica, a Dra. Allyson Berent (DVM, DACVIM), da equipe de Interventional Endoscopy do The Animal Medical Center (Nova York, EUA), apresentou um roteiro diagnóstico estruturado e um arsenal terapêutico que vai do manejo farmacológico a procedimentos minimamente invasivos com taxas de sucesso crescentes.
Berent começou revisitando a neurofisiologia da micção — equilíbrio fino entre o detrusor e os esfíncteres, sob regulação simpática, parassimpática e somática — para mostrar por que a diferenciação entre causas neurogênicas e não neurogênicas é decisiva. Lesões de neurônio motor inferior (sacrais, nervo pudendo) favorecem incontinência verdadeira; acometimentos de neurônio motor superior tendem a cursar com retenção e “transbordamento”. Já entre as causas não neurogênicas, a vedete da rotina é a incompetência do mecanismo do esfíncter uretral (USMI), sobretudo em fêmeas castradas, seguida por instabilidade do detrusor e anormalidades estruturais como ureteres ectópicos (UE).
No consultório, o passo a passo proposto pela especialista inclui histórico dirigido, exame físico e triagem laboratorial com urinalise e cultura, além de imagem abdominal (USG/radiografias). Diante de uma suspeita anatômica — e especialmente para ureteres ectópicos, em que o ultrassom tem sensibilidade limitada (~50%) — a autora defende avançar para urografia excretora por TC e, quando possível, cistoscopia, que é simultaneamente padrão-ouro diagnóstico e via terapêutica: permite visualização direta de óstios ureterais, septos vaginais e estenoses, coleta de biópsias e execução de tratamentos no mesmo ato anestésico.
No tratamento, Berent destaca a abordagem estratificada. Para USMI, a fenilpropanolamina (PPA) e o dietilestilbestrol (DES) permanecem pilares, com taxas de resposta de 75–90% e ~65%, respectivamente (com monitorização pressórica quando em PPA). Anticolinérgicos (oxibutinina/propantelina) mitigam a instabilidade do detrusor; betanecol é opção para atonia vesical. Em casos refratários, análogos de GnRH (leuprorrelina) surgem como alternativa para modular LH/FSH e recuperar tônus esfincteriano. ITUs associadas — frequentes em UE — devem ser tratadas agressivamente com antibióticos guiados por cultura, por períodos prolongados (≈6 semanas).
A virada de chave vem com as técnicas minimamente invasivas. Em USMI refratária, as injeções endoscópicas de agentes “bulking” (colágeno) no colo vesical alcançam 80–90% de sucesso quando combinadas ao manejo médico, com durabilidade de 12–24 meses e possibilidade de reforços. Para ureteres ectópicos intramurais, a ablação a laser guiada por cistoscopia (CLA) consolidou-se como primeira escolha: procedimento ambulatorial, aplicável a >95% dos casos, com >70% de continência sustentada. Técnicas cirúrgicas tradicionais — colpossuspensão, reimplante ureteral ou neoureterocistostomia — permanecem no repertório, assim como o oclusor hidráulico ajustável, que apresenta dados preliminares promissores (até 77% de sucesso em falhas terapêuticas), embora com perfis de risco e custo distintos.
Para a clínica geral, a mensagem central é que “incontinência urinária é frequentemente manejável”. O diagnóstico correto — diferenciando armazenamento de esvaziamento, identificando comorbidades e documentando anatomia — abre caminho para planos personalizados que combinam farmacologia e endoscopia terapêutica. Em um cenário que, por anos, frustrou tutores e clínicos, as novas rotas minimamente invasivas permitem menos dor, menos tempo de internação e melhores desfechos para pacientes antes considerados “intratatáveis”.
Apresentado no 50º Congresso da WSAVA, no Rio de Janeiro, o trabalho de Allyson Berent (AMC, Nova York) reforça a tendência global de incorporar endourologia e imagem avançada à rotina da medicina veterinária de pequenos animais. Com técnica, critérios claros de seleção e integração multiprofissional, a incontinência urinária deixa de ser um destino e volta a ser um desafio clínico com solução.

Veja a íntegra do texto dos proceedings do Congresso.
NOVAS TERAPIAS MINIMAMENTE INVASIVAS PARA INCONTINÊNCIA URINÁRIA REFRATÁRIA
Allyson Berent — The Animal Medical Center, Interventional Endoscopy, Nova York, EUA
Qualificações:
Allyson Berent, DVM, DACVIM
E-mail: allyson.berent@gmail.com
Incontinência urinária: existe uma solução mais simples?
Allyson Berent, DVM, Dipl. ACVIM
The Animal Medical Center — Nova York, NY
Allyson.Berent@amcny.org
A incontinência urinária, incapacidade de controlar voluntariamente o fluxo urinário, é uma condição desafiadora que afeta muitos animais de companhia, particularmente cães. Esse distúrbio multifatorial pode ter causas neurogênicas ou não neurogênicas e impacta tanto a qualidade de vida quanto o vínculo humano–animal. Este artigo explora os mecanismos subjacentes da micção, a abordagem diagnóstica da incontinência e as várias opções terapêuticas disponíveis — do manejo médico conservador a procedimentos avançados minimamente invasivos.
Anatomia e controle da micção
Micção é o processo fisiológico altamente coordenado de armazenamento e, posteriormente, esvaziamento voluntário da urina. Depende da interação entre o músculo detrusor da bexiga e os esfíncteres uretrais. O controle é gerenciado principalmente ao nível da medula espinhal lombo-sacra, com modulação de centros encefálicos superiores e tratos espinhais.
A inervação simpática origina-se dos segmentos lombares via nervo hipogástrico, atuando em receptores beta-adrenérgicos na parede vesical para facilitar o relaxamento durante a fase de armazenamento e em receptores alfa-adrenérgicos no esfíncter uretral interno para promover a contração. Em contraste, a inervação parassimpática dos segmentos sacrais, conduzida pelo nervo pélvico, ativa receptores colinérgicos na bexiga, desencadeando a contração do detrusor para a micção. O nervo pudendo, também de origem sacral, fornece controle somático ao esfíncter uretral externo, permitindo controle consciente da micção.
À medida que a bexiga enche, receptores de estiramento em sua parede enviam aferências pelo nervo pélvico ao tronco encefálico, gerando a sensação consciente de plenitude. Quando a micção é apropriada, eferentes parassimpáticos estimulam a contração do detrusor enquanto sinais inibitórios suprimem a atividade simpática e somática, permitindo o relaxamento uretral e a passagem da urina.
Causas de incontinência urinária
A incontinência urinária pode ser categorizada em neurogênica ou não neurogênica, conforme o mecanismo subjacente.
Incontinência neurogênica
Decorre de interrupções nas vias neurológicas de controle da micção. Lesões que afetam medula espinhal ou nervos periféricos podem comprometer o arco reflexo, resultando comumente em incontinência de neurônio motor inferior quando segmentos sacrais ou nervos pudendos são acometidos. As causas incluem malformações congênitas (p. ex., agenesia sacrocaudal em gatos Manx), trauma, doença do disco intervertebral, neoplasia ou estenose degenerativa.
Lesões de neurônio motor superior, por outro lado, levam mais frequentemente à retenção urinária do que à incontinência: a bexiga fica distendida por incapacidade de esvaziamento voluntário e, quando a pressão interna do órgão excede a resistência uretral, ocorre incontinência por transbordamento. A maioria dos casos neurogênicos também cursa com outros déficits neurológicos, como incontinência fecal ou paresia de membros pélvicos.
Incontinência não neurogênica
As causas não neurogênicas são, em geral, funcionais ou estruturais. A causa funcional mais frequente é a incompetência do mecanismo do esfíncter uretral (USMI), especialmente prevalente em fêmeas castradas e relacionada a influências hormonais. Outra disfunção funcional comum é a instabilidade do detrusor, quando a bexiga contrai-se de modo imprevisível durante a fase de enchimento. Causas estruturais incluem ureteres ectópicos, anomalias vaginais, úraco patente e remanescentes embrionários persistentes. Doenças do trato urinário inferior — infecção, inflamação ou urolitíase — também podem causar incontinência secundária por urgência aumentada ou esvaziamento incompleto.
Incompetência do mecanismo do esfíncter uretral (USMI)
A USMI (do inglês Urethral Sphincter Mechanism Incompetence -USMI) acomete principalmente fêmeas castradas e acredita-se resultar de queda no suporte estrogênio-mediado do músculo liso uretral e do tônus da mucosa. Estudos mostram que pressão uretral e comprimento funcional diminuem entre 12 e 18 meses após a ovariohisterectomia (OHE). Cerca de 20% das fêmeas castradas desenvolvem incontinência, mais comumente três anos após a castração. Cães de raças grandes (>20 kg) têm risco aumentado (31%) em comparação aos de pequeno porte (9,3%). Curiosamente, castração antes do primeiro cio reduz o risco, embora castrar antes dos 3 meses pareça aumentá-lo. A recomendação é castrar entre os 3 meses de idade e o primeiro estro.
Ureteres ectópicos (UE)
Anomalia congênita em que um ou ambos os ureteres contornam o trígono vesical e drenam distalmente na uretra, vagina ou útero. Esse mau posicionamento compromete o mecanismo esfincteriano e leva à incontinência ao longo da vida. Frequentemente associa-se a outras anormalidades urinárias (hidronefrose, displasia renal, hidroureter e remanescentes paramesonéfricos). Labrador Retriever, Golden Retriever, Husky Siberiano e Poodle são super-representados. Fêmeas são mais acometidas, provavelmente por diferenças anatômicas no comprimento uretral. Os sinais começam, tipicamente, ao desmame e podem ser confundidos com problemas comportamentais. Estudos urodinâmicos mostram incompetência esfincteriana em quase 90% dos casos. Infecções urinárias recorrentes são comuns (≈64%), muitas vezes com comprometimento renal (pielonefrite).
Avaliação diagnóstica
Histórico e exame físico completos, incluindo avaliação neurológica, são essenciais. Diferenciar retenção urinária (transbordamento) de falha de armazenamento é crucial. Bexiga persistentemente cheia após micção sugere obstrução ou atonia do detrusor; bexiga vazia com gotejamento contínuo aponta para USMI ou ureter ectópico. Todo paciente incontinente deve realizar urinálise e urocultura. Cultura positiva — sobretudo por cisto centese — sugere fortemente ITU, embora possa ser secundária a UE, USMI ou neoplasia.
Ultrassonografia e radiografia abdominais ajudam a identificar anomalias estruturais. Contudo, a sensibilidade do ultrassom para ureteres ectópicos é limitada (~50%); por isso, métodos avançados como urografia excretora por TC ou cistoscopia são frequentemente indicados. Vaginoscopia e estudos contrastados (vaginoureterografia, pielografia intravenosa) podem revelar anomalias adicionais. A cistoscopia permanece o padrão-ouro para diagnóstico e intervenção terapêutica: permite visualização direta dos óstios ureterais, septos vaginais, estenoses e patologias vesicais, além de possibilitar tratamento imediato (ablação a laser, injeção de agentes “bulking”, biópsias) sob a mesma anestesia. Testes urodinâmicos podem ser úteis em casos refratários, embora o acesso seja limitado na prática geral.
Manejo médico
A terapia médica varia conforme a causa:
• Atonia vesical: betanecol aumenta a contratilidade do detrusor (cães: 5–25 mg VO TID; gatos: 1,25–7,5 mg VO TID).
• Incontinência por urgência: anticolinérgicos (oxibutinina, propantelina) reduzem a instabilidade do detrusor.
• USMI: objetivo é aumentar o tônus uretral. Agonistas alfa (fenilpropanolamina, PPA) e estrogênios (DES) são comuns. O DES sensibiliza receptores alfa, muitas vezes potencializando a PPA. Aproximadamente 75–90% dos cães respondem à PPA e 65% ao DES. Monitorização pressórica é essencial com PPA. Em casos não responsivos, análogos de GnRH (leuprorrelina) podem ser considerados para reduzir LH/FSH e restaurar o tônus esfincteriano. ITUs devem ser tratadas de forma agressiva — especialmente em UE — com antibióticos prolongados (frequentemente 6 semanas), baseados em cultura.
Opções minimamente invasivas e cirúrgicas
• Agentes “bulking” endoscópicos: injeções de colágeno por cistoscopia (submucosa no colo vesical) são opção minimamente invasiva para USMI refratária. Taxas de sucesso de 80–90% quando combinadas a terapia médica. Resultados duram 12–24 meses, podendo exigir reinjeções.
• Técnicas cirúrgicas: colpossuspensão (reposiciona o colo vesical intra-abdominal) melhora a continência em ~50%, mas pode causar disúria. Um método mais recente é o oclusor hidráulico, com cuff ajustável implantado para aumentar a resistência uretral; estudos preliminares mostram sucesso de até 77% em cães que falharam em outras terapias.
• Tratamento dos ureteres ectópicos: a ablação a laser guiada por cistoscopia (CLA) é hoje o tratamento preferido para UE intramurais. Procedimento ambulatorial com laser diodo ou holmium: YAG para abrir o ureter na luz vesical. Mais de 95% dos casos são candidatos; >70% alcançam continência de longo prazo. Opções cirúrgicas incluem neoureterocistostomia, reimplante ureteral ou ureternefrectomia (em rins não funcionais). Contudo, taxas de continência pós-operatória são menores (40–71%).
Conclusão
A incontinência urinária é frustrante, porém frequentemente manejável. Uma investigação diagnóstica completa — incluindo cistoscopia e imagem avançada — é, muitas vezes, a chave para identificar a causa subjacente. Com o uso crescente de procedimentos minimamente invasivos como CLA e injeções endoscópicas de colágeno, o tratamento da incontinência urinária nunca foi tão promissor. Combinar técnicas inovadoras com manejo médico estratégico oferece um caminho para a continência em muitos casos anteriormente intratáveis.
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