Apresentação do Dr. Antonio Maria Tardo sobre Hipotireoidismo canino integrou a programação científica do 50º Congresso da WSAVA, no Rio de Janeiro
Rio de Janeiro (WSAVA 2025) — O hipotireoidismo é a endocrinopatia de tireoide mais comum em cães — e, paradoxalmente, também uma das mais superdiagnosticadas na rotina. O alerta foi feito pelo Dr. Antonio Maria Tardo (DVM, PhD, DECVIM-CA – Medicina Interna), do Department of Veterinary Medical Sciences da University of Bologna (Itália), em conferência apresentada no 50º Congresso Mundial da WSAVA (World Small Animal Veterinary Association), realizado no Rio de Janeiro. Com foco prático, Tardo delineou um roteiro clínico-laboratorial para reduzir falsos-positivos e orientar decisões terapêuticas com base em critérios robustos.
Segundo o pesquisador, a prevalência estimada do hipotireoidismo canino varia entre 0,07% e 0,23%, e a forma primária adquirida, com destruição imunomediada da glândula, predomina em cães adultos. Algumas raças — como Golden Retriever, Dobermann, Labrador, Irish Setter, Rhodesian Ridgeback, Schnauzer Gigante, Boxer e Cocker Spaniel — figuram entre as mais afetadas, com idade média ao diagnóstico em torno de 7 anos. Os sinais clínicos surgem lentamente e envolvem múltiplos sistemas, com destaque para o componente dermatológico: pelagem de má qualidade, alopecia endócrina não pruriginosa, hiperpigmentação e seborreia aparecem como marcadores frequentes. No laboratório, hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia em jejum estão entre os achados mais consistentes, ao lado de anemia discreta normocítica/normocrômica.
O ponto nevrálgico, reforça Tardo, está na triagem responsável: “testar apenas cães com sinais compatíveis e alterações clínicas e laboratoriais coerentes aumenta o valor preditivo dos exames e reduz o risco de erro”. Isso porque nenhum dos testes disponíveis oferece 100% de acurácia. Na avaliação basal, TT4 (tiroxina total), fT4 (tiroxina livre) e TSH são úteis, mas sofrem interferências — sobretudo pela síndrome do eutireoidiano doente (NTIS) e por medicamentos. Por essa razão, quando os resultados são inconclusivos, os padrões-ouro continuam sendo o teste de estímulo com TSH e a cintigrafia tireoidiana.
A conferência detalhou pegadinhas diagnósticas comuns. A TT4 baixa isolada não fecha diagnóstico, uma vez que pode decair em eutireoidianos doentes, em cães idosos, pequenos vs. grandes e em raças lebreis, que guardam valores naturalmente mais baixos. A fT4 por diálise de equilíbrio oferece maior especificidade por sofrer menos interferência de NTIS e autoanticorpos, mas não substitui a integração clínica dos achados. Já o TSH canino, embora altamente específico quando elevado, tem sensibilidade limitada: até 40% dos hipotireoidianos apresentam TSH normal. O padrão que mais sustenta o diagnóstico é a associação T4/fT4 baixas + TSH alto em um cão com sinais compatíveis. Quando todos os hormônios estão normais, o hipotireoidismo pode ser excluído com segurança.
Quando persiste a dúvida, o teste de estímulo com TSH mostra seu valor. Tardo citou evidências recentes com rhTSH (Thyrogen®), dose de 75 μg/cão, que propõem TT4 pós-estímulo > 21,9 nmol/L (1,7 μg/dL) para excluir (sensibilidade 100%, especificidade 93%, VPN 100%) e < 16,7 nmol/L (1,3 μg/dL) para confirmar (sensibilidade 92%, especificidade 97%, VPP 95%) o hipotireoidismo. Entre esses cortes, o clínico deve ponderar contexto (sinais, comorbidades, fármacos) e considerar imagem funcional (cintigrafia), quando disponível.
O especialista também chamou atenção para situações-limite: TSH alto com T4/fT4 normais pode refletir estágio inicial da doença — cenário em que não se indica iniciar levotiroxina de pronto; recomenda-se repetir o painel em 3–6 meses e descartar hipoadrenocorticismo, diferencial clássico para TSH elevado. Já a combinação TT4 baixa + TSH normal não distingue hipotireoidismo de NTIS, exigindo testes adicionais.
Em um congresso marcado pela discussão de uso racional de exames e antimicrobianos, a fala de Tardo reforçou o mesmo princípio aplicado à endocrinologia: disciplina diagnóstica poupa pacientes de tratamentos desnecessários e melhora desfechos clínicos. Para a prática diária, o roteiro sugerido é claro:
- Suspeitar com critério (sinais compatíveis + bioquímica coerente).
- Ler o contexto (raça, idade, fármacos, comorbidades/NTIS).
- Usar o painel basal (TT4, fT4 por diálise de equilíbrio, TSH) como triagem interpretada, não como sentença.
- Diante de inconclusão, confirmar com TSH estímulo e considerar cintigrafia.
- Reavaliar casos-limite antes de prescrever levotiroxina.
Ao final, a mensagem do professor da Universidade de Bolonha ecoou entre clínicos gerais e internistas: “A melhor prevenção do erro em hipotireoidismo é respeitar a fisiopatologia e testar os pacientes certos”. No palco do 50º WSAVA, no Rio, o recado ganhou contornos de diretriz prática: somar anamnese, exame físico, laboratório criterioso e, quando necessário, testes confirmatórios ainda é a forma mais efetiva de navegar com segurança pelo diagnóstico do hipotireoidismo canino.
Veja a íntegra do texto dos proceedings do Congresso.
NAVEGANDO PELO HIPOTIREOIDISMO CANINO: UM GUIA PARA EVITAR O DIAGNÓSTICO EQUIVOCADO
Antonio Maria Tardo — University of Bologna, Department of Veterinary Medical Sciences, Ozzano dell’Emilia, Itália
Qualificações:
Antonio Maria Tardo, DVM, PhD, DECVIM-CA (Medicina Interna)
Department of Veterinary Medical Sciences – University of Bologna, Itália
E-mail: antoniomaria.tardo2@unibo.it
O hipotireoidismo descreve uma função inadequadamente reduzida da glândula tireoide, resultando em um estado de deficiência de hormônios tireoidianos. Em animais, o hipotireoidismo pode ocorrer na forma congênita ou, mais frequentemente, como forma adquirida; do ponto de vista etiológico, classifica-se ainda como primário, quando a doença envolve primariamente a glândula tireoide, e central, quando decorre de deficiência de TSH (secundário/hipofisário ou terciário/hipotalâmico). Em cães, o hipotireoidismo primário adquirido é uma endocrinopatia comum em adultos e, na maioria das vezes, é causado por destruição imunomediada da glândula tireoide.
O hipotireoidismo é a doença tireoidiana mais comum em cães, com prevalência estimada entre 0,07% e 0,23%. Contudo, trata-se de uma condição superdiagnosticada, devido às dificuldades inerentes para se obter um diagnóstico definitivo.
SINALMENTO
Cães de qualquer raça podem desenvolver hipotireoidismo; porém, em algumas raças (Golden Retriever, Dobermann Pinscher, Labrador Retriever, Irish Setter, Rhodesian Ridgeback, Schnauzer Gigante, Boxer e Cocker Spaniel), a incidência é maior. A idade média ao diagnóstico é em torno de 7 anos (faixa de 0,5 a 15 anos).
SINAIS CLÍNICOS
O início dos sinais clínicos costuma ser gradual, devido à progressão lenta da doença, e múltiplos sistemas são envolvidos (Tabela 1).
Tabela 1. Achados clínicos em cães com hipotireoidismo
(Amostras de estudos)
- Anormalidades dermatológicas: 88% | 84% | 84%
- Alopecia: 40% | 55% | 70%
- Fraqueza: 12% | 48% | 67,5%
- Letargia: 48% | 41% | 62,5%
- Obesidade: 49% | 46% | 42,5%
- Sinais neurológicos: 2% | 26% | 2,5%
- Bradicardia: 5% | 15% | —
- Sinais reprodutivos: <2% | 12% | —
- Intolerância ao frio: 33% | 2,5% | 2%
A maioria dos cães com hipotireoidismo apresenta anormalidades dermatológicas que variam conforme a raça, a gravidade e a duração do estado hipotireoidiano. As alterações mais comuns incluem pelagem de má qualidade, falha no repilo após tosa, alopecia endócrina não pruriginosa, hiperpigmentação e seborreia.
ACHADOS LABORATORIAIS
Hemograma: a alteração hematológica mais comum, em aproximadamente 30–40% dos cães hipotireoidianos, é anemia discreta, normocítica, normocrômica e não regenerativa.
Bioquímica sérica: hipercolesterolemia em jejum (71–91%) e hipertrigliceridemia (75–88%) são os achados mais consistentes. Alterações menos comuns incluem elevação discreta de ALT, FA (SAP), CK, e parâmetros renais (creatinina e SDMA).
TESTES ENDÓCRINOS
O hipotireoidismo canino é a endocrinopatia mais superdiagnosticada em cães. Seleção criteriosa do paciente com base na história clínica, exame físico e achados laboratoriais é requisito essencial para aumentar o valor preditivo positivo dos testes e reduzir falsos-positivos. Vários testes estão disponíveis, incluindo dosagens basais hormonais, testes dinâmicos de função e imagem diagnóstica. Nenhum teste possui 100% de acurácia, reforçando a necessidade de testar apenas cães com sinais clínicos compatíveis e alterações clínico-patológicas correlatas.
O painel basal envolve medir TT4 (tiroxina total), fT4 (tiroxina livre) e TSH. Entretanto, diversos fatores (principalmente a síndrome do eutireoidiano doente – NTIS – e certos fármacos) podem influenciar as concentrações hormonais. Por isso, os métodos considerados padrão-ouro para diagnóstico de hipotireoidismo canino hoje são o teste de estimulação com TSH e a cintigrafia tireoidiana.
A síndrome do eutireoidiano doente (NTIS) refere-se à supressão de hormônios tireoidianos séricos que ocorre em pacientes eutireoidianos devido a doença concomitante. O grau de supressão depende do tipo, gravidade e duração da enfermidade. Causas incluem praticamente qualquer doença sistêmica, cirurgia, trauma e ingesta calórica inadequada.
Tiroxina total (TT4)
É o teste inicial de triagem para avaliar a função tireoidiana. A TT4 compreende a fração ligada à proteína e a fração livre (fT4). A grande maioria dos cães hipotireoidianos tem TT4 muito baixa ou indetectável, e a sensibilidade do teste é >90%. A principal limitação é a baixa especificidade, pois muitos fatores não tireoidianos podem reduzir a TT4 em cães eutireoidianos. Logo, não se pode diagnosticar hipotireoidismo apenas com TT4 baixa.
Médias de TT4 são mais altas em cães pequenos do que em médios e grandes. As concentrações de TT4 declinam com a idade e podem ficar abaixo do intervalo de referência. Diversas raças lebrel (Greyhound, Whippet, Sloughi, Saluki) exibem TT4 mais baixa, frequentemente abaixo do intervalo padrão; cães de trenó de corrida também.
Tiroxina livre (fT4)
A fT4 é a única forma metabolicamente ativa do T4 (entra nas células). Em cães hipotireoidianos, espera-se fT4 baixa. A fT4 sofre menos influência da NTIS e de autoanticorpos, apresentando especificidade maior (78–94%) que a TT4; porém, a sensibilidade é menor.
Atualmente, a diálise de equilíbrio é o padrão-ouro para medir fT4, pois não é influenciada por autoanticorpos ou proteínas ligantes. Estudos preliminares com quimioluminescência (CLIA, Immulite) sugerem baixa acurácia para fT4; portanto, medir fT4 por CLIA agrega pouco quando combinada à TT4.
TSH canino
Em hipotireoidismo primário, o TSH tende a estar aumentado por falta de retroalimentação negativa. Trata-se de teste espécie-específico; o CLIA (Immulite Canine TSH) é o mais usado. Estudos mostram alta especificidade (>90%) no diagnóstico; assim, TSH costuma ser medido junto com TT4 para elevar a especificidade. Contudo, 20–40% dos cães hipotireoidianos têm TSH normal, reduzindo a sensibilidade.
A combinação T4 ou fT4 baixos + TSH alto, em um cão com suspeita clínica, sustenta fortemente o diagnóstico. Ao contrário, quando todos os hormônios estão normais, o hipotireoidismo pode ser excluído. Situação rara: TSH alto com T4/fT4 normais — pode refletir estágio inicial da doença (como em humanos). Hipoadrenocorticismo é outro diferencial de TSH aumentado. Nesses casos, não se deve iniciar levotiroxina; recomenda-se repetir o teste em 3–6 meses e/ou testar para hipoadrenocorticismo. Quando TT4 baixa + TSH normal, não é possível distinguir entre hipotireoidismo e NTIS; testes adicionais são recomendados.
Teste de estimulação com TSH
Quando TT4/fT4/TSH basais são inconclusivos, mas a suspeita de hipotireoidismo permanece, pode-se realizar o teste de estímulo com TSH para avaliar a reserva da tireoide por meio de TSH exógeno. Junto com a cintigrafia, é considerado padrão-ouro. O protocolo clássico usa TSH humano recombinante (rhTSH, Thyrogen®) por via IV, dosando TT4 antes e 6 horas após.
Alguns estudos propuseram TT4 pós-estímulo > 28 nmol/L (2,2 μg/dL), ou ao menos aumento de 1,5× sobre o basal, para excluir hipotireoidismo. Estudo recente com 114 cães (dose de 75 μg/cão de rhTSH) sugeriu TT4 pós-estímulo > 21,9 nmol/L (1,7 μg/dL) para excluir (Se 100%, Sp 93%, VPN 100%) e TT4 < 16,7 nmol/L (1,3 μg/dL) para confirmar (Se 92%, Sp 97%, VPP 95%) o hipotireoidismo.
Sobre o 50º WSAVA Congress – 2025
- 50º WSAVA Congress – 2025
- Data: 25 a 27 de setembro de 2025
- Local: Riocentro
- Endereço: Avenida Salvador Allende, 6555 – Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
- Horário: das 10h00 às 18h30
- Ingressos: 50° WSAVA Congress
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