Deixem os tutores falar: Tempos de consulta reduzidos não significam necessariamente eficiência
O tempo é escasso no dia-a-dia da nossa profissão de veterinários. Não estou só a falar do tempo para os procedimentos cirúrgicos, para tratar dos animais internados, para escrever historiais ou até para...
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O tempo é escasso no dia-a-dia da nossa profissão de veterinários. Não estou só a falar do tempo para os procedimentos cirúrgicos, para tratar dos animais internados, para escrever historiais ou até para almoçar. Os dias dos veterinários são assolados por um problema ainda mais grave, do meu ponto de vista: a falta de tempo para consultas de qualidade. Numa época em que cada vez mais aprimoramos os diferentes parâmetros da gestão dos CAMV, é comum assistirmos à introdução do “tempo de consulta” como um parâmetro a ser melhorado, com vista à maior rendibilidade e a todos os benefícios inegáveis que proporciona. Mas serão tempos de consulta reduzidos realmente eficazes a assegurar rendibilidade e qualidade dos serviços? É possível atribuir um tempo determinado em função do tipo de consulta? Será possível definir o tipo de consulta a priori? E com o tempo contado, como podemos assegurar os melhores cuidados possíveis?
Quando comecei a trabalhar em hospital, rapidamente percebi que as minhas consultas demoravam demasiado tempo. Era frequente haver atrasos na programação e cheguei a ter os meus superiores a perguntarem porque demorava tanto tempo. Claro que, sobretudo quando começamos a trabalhar, temos muitas dúvidas sobre o que perguntar e como perguntar, existe o medo de perder algum dado relevante, enfim, andamos aos papeis bastantes vezes no início. (Tudo normal, parece-me agora!) Perante isto, decidi trabalhar no tempo de consulta, quase como um jogo, para ver se conseguia ser ultrarrápido e despachar o maior número de consultas possível no menor tempo. Para isto, precisava de ser capaz de antecipar os problemas que chegavam e de preparar toda a consulta e as perguntas a fazer com base na informação que recebia da receção sobre os motivos da consulta. Se era uma vacinação, preparava a vacina que ia administrar, se era um problema de pele, preparava lâminas e lâmpadas, se era um problema metabólico, tubos de recolha, cateteres, o que fosse. Tornei-me especialista em preparação do terreno para a consulta seguinte. Obviamente, juntando a esta estratégia a prática e o conhecimento médico adquirido com o tempo, conseguia fazer consultas cada vez mais rápidas. No entanto, muitas vezes havia dados na anamnese que escapavam, detalhes que não tinham sido observados ou perguntados e questões levantadas no final da consulta que mudavam completamente o propósito daquela visita. Se, por um lado, estava cada vez mais rápido e “eficiente”, por outro, sentia não estar a fazer um bom trabalho. Esses elementos que escapavam nas consultas-relâmpago geravam muita confusão mais à frente.
“Serão tempos de consulta reduzidos realmente eficazes a assegurar rendibilidade e qualidade dos serviços?”
Quase que consigo apostar que cada um de nós já se deparou com este problema. De facto, a relação entre o tempo das consultas, a sua estrutura e os resultados (ou eficácia) do atendimento é até uma questão amplamente estudada, tanto em medicina humana como em medicina veterinária. Se é importante, por todas as razões óbvias, que as consultas não sejam demasiado demoradas, pode ser desafiante realizar um atendimento de qualidade. Aqui, as competências de comunicação e uma boa estrutura de consulta podem ajudar-nos bastante, sendo o método Calgary-Cambridge uma ferramenta valiosa para condução de consultas eficientes e de qualidade.
Cindy Adams e Suzanne Kurts descrevem em “Skills for communicating in Veterinary Medicine” uma série de dados interessantes sobre o que acontece nas consultas de uma forma geral e que nos pode ajudar a identificar pontos de atenção no nosso trabalho diário. Um dos momentos fundamentais de qualquer consulta é precisamente o início. É durante os primeiros minutos da consulta que conseguimos perceber o motivo e a perspetiva do tutor sobre o que está a acontecer ao animal. Curiosamente, e de acordo com estudos existentes, este momento inicial é muitas vezes desaproveitado. Dysart et al. (2011), num estudo realizado com veterinários de pequenos animais no Canadá, identificou que pouco mais de um terço dos veterinários pergunta ativamente qual o motivo da consulta. Mais, quando o motivo é perguntado, o tempo de resposta dos tutores antes de serem interrompidos é de cerca de 15 segundos. Este dado faz-me imaginar os tutores a prepararem um elevator pitch antes de virem à consulta. Claro está que estes tempos de antena reduzidos podem resultar em falhas na comunicação e, consequentemente, erros no diagnóstico e resultados indesejados, tanto para o tutor como para o veterinário. Ora, se juntarmos a este dado o facto identificado por Beckman and Frankel de que a ordem pela qual são apresentados os motivos ou queixas não tem qualquer relação com a importância clínica, é fácil perceber que um momento curto de explicação inicial pode deixar de fora muitos elementos clinicamente relevantes. Interessante é ainda o dado de Langewitz et al. (2002), que estudou uma clínica de medicina interna (humana) na Suíça para perceber se, ao deixar os clientes falarem livremente, haveria um impacto real no tempo de consulta. O que Langewitz verificou foi que 78% dos pacientes terminavam a sua exposição inicial em menos de 2 minutos, se não fossem interrompidos. Não é assim tanto tempo, sejamos francos.
Se queremos tirar o máximo partido do início da consulta, é interessante ter presentes alguns objetivos a cumprir durante esta fase. Segundo Adams & Kurtz, os objetivos da fase inicial são: ganhar consciência do bem-estar geral do animal e do estado emocional do tutor, identificar os motivos existentes para a visita, estabelecer com o cliente um plano para a consulta em questão e, sobretudo, criar relação com o tutor – criar rapport. É através da criação de uma relação de confiança e abertura que podemos mais facilmente ter acesso a todas as preocupações do tutor, ao maior número de dados clínicos relevantes e a criar uma parceria tutor-veterinário que permita a partilha de decisões e de responsabilidades relativas ao bem-estar do animal. A geração desta relação é tão importante que aparece em diferentes guias para consultas em saúde ao longo do tempo (Pendleton et al., 2003; Neighbour, 1987; Cohen-Cole, 1991; Kalamazoo Consensus Statement, 2001; Haes and Bensing, 2009; Adams and Kurtz, 2017). Curiosamente, a satisfação dos clientes pode estar mais relacionada com a interação veterinário-tutor do que com a forma como os cuidados são prestados ao animal (Case, 1988).
A criação de rapport com os tutores assenta sobretudo, na minha perspetiva, na identificação de semelhanças. Para isto, é preciso estarmos realmente presentes e atentos. Para assegurar a presença, a atenção total na consulta, Adams e Kurtz sugerem que se assegure que as necessidades pessoais e de conforto estejam cumpridas (quem nunca fez uma consulta a pensar que devia ter ido à casa de banho ou cheio de fome?), que se leia toda a informação disponível sobre consultas anteriores, mas sobretudo que se termine todos estes passos, e quaisquer tarefas anteriores, antes de receber o cliente.
A identificação de semelhanças, que se traduz na sensação de que o nosso interlocutor é como nós, que nos compreende, que sabe do que estamos a falar, é para mim o elemento que possibilita a verdadeira comunicação. Todos já passámos por momentos em que falámos com alguém e perdemos a noção das horas ou em que, passado pouco tempo de conhecer alguém, pareceu que o conhecíamos há anos. Isto acontece porque são identificadas semelhanças, consciente ou inconscientemente, entre os interlocutores. Esta é uma habilidade inata, ligada ao interesse genuíno, e que pode ser tornada consciente e desenvolvida quando necessária. Voltemos, pois, à importância dos primeiros momentos de consulta: ao receber o cliente, o simples facto de nos apresentarmos e fazermos perguntas abertas iniciais que permitam ao cliente expor o que o trouxe ao CAMV, sem qualquer julgamento ou interrupção da nossa parte (por mais difícil que possa ser, por vezes), permite-nos não só começar a recolher toda a informação relevante, como observar a pessoa que temos à nossa frente. Podemos perceber, como referi num artigo anterior, de que forma aquele indivíduo comunica, a velocidade a que fala, que palavras ou metáforas usa, quais os aspetos que para ela são mais relevantes e a sua linguagem não-verbal. Neste último aspeto, estamos sobejamente qualificados, dado que comunicamos diariamente com animais que não falam. No fundo, observando todos estes elementos, podemos perceber o que realmente a preocupa, e nem sempre é só o problema médico do animal.
“O tempo usado nos primeiros momentos da consulta, mais dedicados à escuta e observação, dita a natureza da relação que é criada e condiciona os resultados no atendimento prestado, pelo que me parece de extrema importância”
Identificados os elementos, podemos usá-los na nossa comunicação para criar semelhanças e construir a relação com o tutor. Estratégias tão simples como devolver aquilo que foi explicado, usando as expressões do tutor, e confirmando que entendemos o que nos queria dizer, reproduzir a linguagem não-verbal e postura corporal do tutor, o tom de voz e a velocidade de discurso, ou até mesmo a frequência respiratória, fazem toda a diferença. O tempo usado nestes primeiros momentos, mais dedicados à escuta e observação, dita a natureza da relação que é criada e condiciona os resultados no atendimento prestado, pelo que me parece de extrema importância.
Proponho que experimente, no seu dia-a-dia de consultas, ter presente estas perguntas: Como costumo iniciar as consultas? O que pergunto? Quanto tempo deixo os tutores falarem sem os interromper? Como está a minha relação com os tutores? Com que tutores tenho mais facilidade em estabelecer uma relação eficaz? E com que tutores a relação é mais difícil? Qual é a ligação entre a minha abordagem inicial e as relações que crio?
Acredito profundamente que a melhor consulta é aquela dada por um veterinário com um interesse genuíno nos animais e nos seus tutores, e que é possível fazê-lo sem demorar mais tempo do que o adequado. Pode ser tão simples como deixá-los falar.
* Médico veterinário, coach e formador
**Artigo de opinião publicado na edição 169 da VETERINÁRIA ATUAL, de março de 2023.