Por Digivets

Setembro 26, 2025

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Trabalho de Mary Marcondes (UNESP) sobre Leishmaniose canina é apresentado no 50º Congresso da WSAVA, no Rio de Janeiro, e destaca salto nas técnicas moleculares e sorológicas

Rio de Janeiro (WSAVA 2025) — A leishmaniose canina, enfermidade multissistêmica marcada por enorme variabilidade clínica e imunológica, voltou ao centro do debate científico no 50º Congresso Mundial da WSAVA. Em apresentação detalhada, a professora e pesquisadora Mary Marcondes (DVM, MSc, PhD), da UNESP, revisitou o estado da arte dos métodos diagnósticos e sustentou que a última década trouxe um salto qualitativo: graças às técnicas moleculares e sorológicas aprimoradas, o diagnóstico tende a ser mais precoce, preciso e acessível, melhorando o tratamento e o controle da doença em áreas endêmicas.

Marcondes iniciou lembrando que, em regiões onde a doença é endêmica, há muitos mais cães infectados do que doentes, e que o quadro clínico depende da resposta imune do hospedeiro. A via Th1 (celular) favorece o controle da Leishmania; já a via Th2 (humoral) se mostra ineficaz contra um parasita intracelular, associando-se às formas mais graves. Fatores como genética, carga parasitária e estado imune (incluindo coinfecções e desnutrição) modulam essa balança, o que ajuda a explicar por que alguns animais cursam assintomáticos, enquanto outros evoluem com doença severa.

No consultório, a dermatologia costuma ser a face mais visível da leishmaniose: dermatite esfoliativa (localizada ou generalizada), úlceras, lesões papulares e nodulares mucocutâneas, além de onicogrifose são achados frequentes. O espectro sistêmico inclui perda de peso, atrofia muscular, linfadenomegalia, alterações oculares (blefarite, conjuntivite, uveíte) e, sobretudo, comprometimento renal — principal causa de morte, via glomerulonefrite imunomediada que evolui para insuficiência renal. Nos exames, apesar de pouca especificidade, chamam atenção anemia não regenerativa, hiperglobulinemia com hipoalbuminemia (queda da relação A/G), proteinúria (merecendo estadiamento com UPC) e, quando possível, SDMA para monitorar dano renal.

Diante de um quadro tão polimórfico e de coinfecções não raras, confirmar a leishmaniose é passo crítico — e é justamente aí que os avanços diagnósticos fazem diferença. O parasitológico direto (amastigotas em esfregaços de pele, linfonodo, medula ou baço; histologia e imunohistoquímica) segue útil, mas sua sensibilidade cai em fases iniciais ou com baixa carga. As provas sorológicas — IFI, ELISA, Western blot e testes rápidos — democratizaram o acesso, porém exigem leitura crítica da sensibilidade e especificidade. Marcondes lembrou que o antígeno empregado muda a equação: painéis com recombinantes tendem a ganhar especificidade às custas de perder sensibilidade.

O grande avanço, sublinhou a pesquisadora da UNESP, está nas técnicas moleculares. A PCR convencionou-se como ferramenta altamente sensível para detectar DNA de Leishmania em várias matrizes — linfonodo, medula, soro — inclusive precocemente. A qPCR (tempo real) agrega a quantificação da carga parasitária, dado valioso para monitoramento e prognóstico. Em paralelo, a LAMP (amplificação isotérmica) se projeta como solução rápida e de campo: barata, sem termociclador, com alta sensibilidade/especificidade e resultados em menos de uma hora — vantagens importantes para triagens em ambientes remotos. O preço da velocidade, advertiu, é o risco de contaminação e a necessidade de cautela interpretativa em cargas baixas ou infecções mistas.

Outro ponto prático destacado foi a dinâmica temporal entre PCR e sorologia: no início da infecção, é mais comum obter PCR positiva no sangue com sorologia negativa; ao longo do tempo, o parasita circulante cai, anticorpos sobem e a sensibilidade sanguínea da PCR diminui — momento em que vale trocar a amostra (linfonodo/medula/pele) para manter a acurácia. Essa leitura fase-dependente evita conclusões apressadas e melhora o timing terapêutico.

Em síntese, o algoritmo diagnóstico defendido por Marcondes começa com história + exame clínico e painel clínico-patológico (hemograma, bioquímica, eletroforese, urina com UPC e, quando possível, SDMA). A confirmação vem pela complementaridade: parasitológico (quando positivo, é definitivo), sorologia (com entendimento de seus limites) e molecular (PCR/qPCR; LAMP em cenários de campo). A escolha da amostra correta, conforme a fase da doença, e a interpretação integrada dos resultados são, hoje, os pilares de um diagnóstico mais cedo e mais certeiro.

Apresentado no 50º WSAVA, no Rio de Janeiro, o trabalho de Mary Marcondes (UNESP) também sublinhou o impacto epidemiológico do diagnóstico bem feito: identificar rapidamente quem está doente, quem é portador e onde está o foco permite intervenções focalizadas e reduz transmissão — um ganho direto para saúde pública e bem-estar animal. Com a chegada de métodos quantitativos e portáteis, o campo caminha para uma leishmaniase menos enigmática e mais gerenciável, na clínica e no território.

Veja a íntegra do texto dos proceedings do Congresso.

LEISHMANIOSE: ESTAMOS APRIMORANDO AS ABORDAGENS DIAGNÓSTICAS?
Mary Marcondes — São Paulo State University (UNESP), São Paulo, Brasil

Mary Marcondes — DVM, MSc, PhD
E-mail: marcondes.mary@gmail.com

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A leishmaniose canina é uma doença multissistêmica com um espectro muito variável de respostas imunológicas e manifestações clínicas. Em áreas endêmicas, a prevalência de cães portadores da infecção é muito maior do que a daqueles que apresentam doença clínica. As manifestações clínicas da leishmaniose estão associadas ao tipo de resposta imune do hospedeiro (Th1 ou Th2) e podem variar desde ausência total de sinais clínicos até doença clínica grave.

Cães que desenvolvem resposta predominante do tipo Th1 tendem a controlar melhor a infecção, já que esse tipo de resposta, de caráter celular, associa-se à eliminação intracelular do parasita. Em contrapartida, cães com resposta Th2 predominante apresentam resposta humoral, a qual não é eficaz contra parasitas intracelulares como Leishmania, e está associada a formas clínicas mais graves da doença.

Alguns fatores que podem determinar qual tipo de resposta imune se desenvolve incluem a genética do hospedeiro (algumas raças são mais propensas a desenvolver leishmaniose clínica, enquanto outras tendem a respostas Th1 mais eficazes); a carga parasitária (cargas altas podem induzir resposta Th2); e o estado imunológico do animal (cães imunocomprometidos, por infecções concomitantes ou desnutrição, por exemplo, podem ter maior predisposição a uma resposta Th2).

Os sinais clínicos da leishmaniose canina são muito variados e podem incluir perda de peso, atrofia muscular, intolerância ao exercício, linfadenomegalia, palidez de mucosas, hepatomegalia e esplenomegalia. Cães afetados podem apresentar epistaxe. As manifestações dermatológicas são as mais evidentes e muitas vezes o principal motivo da consulta veterinária. Elas variam em características e extensão. As lesões cutâneas associadas à leishmaniose canina incluem dermatite esfoliativa, que pode ser generalizada ou localizada em face, orelhas e extremidades. Também se observam dermatites ulcerativas, papulares, nodulares mucocutâneas e pústulas estéreis. Onicogrifose também é comum em cães com leishmaniose.

As manifestações oculares mais comuns incluem blefarite, conjuntivite e uveíte. A doença renal é a principal causa de morte em cães com leishmaniose, sendo de origem multifatorial. A glomerulonefrite imunomediada é o principal mecanismo de dano. A inflamação crônica provoca lesão tubular e intersticial, evoluindo para insuficiência renal, acompanhada de poliúria, polidipsia e vômitos. Embora menos frequentes, já foram descritas alterações cardíacas e neurológicas em cães com leishmaniose. Alguns cães desenvolvem lesões articulares, musculares e ósseas.

Embora não existam alterações laboratoriais específicas, podem ocorrer anemia não regenerativa leve a moderada, leucocitose ou leucopenia, trombocitopenia, hiperproteinemia com hiperglobulinemia e hipoalbuminemia, frequentemente expressa por diminuição da relação albumina/globulina. Deve-se avaliar a presença de proteinúria e estadiar a doença renal com a determinação da razão proteína/creatinina urinária. Biomarcadores renais, como a dimetilarginina simétrica sérica (SDMA), também podem ser úteis para avaliar a extensão do dano renal. Alguns cães apresentam elevação de enzimas hepáticas.

O diagnóstico da leishmaniose canina é um grande desafio, não apenas porque inúmeras afecções sistêmicas e cutâneas precisam ser consideradas nos diferenciais, mas também porque muitas vezes a infecção por Leishmania infantum está associada a outros patógenos, o que dificulta o diagnóstico. As abordagens diagnósticas melhoraram significativamente nos últimos anos, graças aos avanços em técnicas moleculares e sorológicas.

Embora métodos tradicionais ainda sejam usados em muitas regiões, novas tecnologias têm contribuído para um diagnóstico mais precoce, preciso e acessível, melhorando as perspectivas de tratamento e controle da doença. A abordagem diagnóstica geral da leishmaniose deve se basear na história clínica, nos sinais clínicos e nas alterações clinicopatológicas (hemograma, eletroforese de proteínas, perfil bioquímico e urinalálise). A confirmação é feita por exames parasitológicos, sorológicos e métodos moleculares específicos.

A leishmaniose pode ser confirmada por exame parasitológico, com observação microscópica de amastigotas do parasita em esfregaços de nódulos cutâneos, linfonodos, medula óssea e aspirados esplênicos. As formas amastigotas são arredondadas ou ovais, de 2,5 a 5 μm de diâmetro, com núcleo central e cinetoplasto. Podem ser vistas livres ou fagocitadas por fagócitos mononucleares. Também podem ser observadas em histologia e imunohistoquímica. Embora amplamente utilizado, o exame parasitológico pode ter baixa sensibilidade, especialmente em fases iniciais da doença ou quando a carga parasitária é baixa.

Vários métodos sorológicos têm sido empregados para detectar anticorpos anti-Leishmania no soro. As técnicas mais usadas são a imunofluorescência indireta (IFI), o ELISA e o Western blot. Desenvolveram-se testes rápidos (imunoensaios cromatográficos e ELISA) que detectam anticorpos anti-Leishmania em sangue total. Esses testes são simples, rápidos e fáceis de executar. Contudo, é importante conhecer a sensibilidade e a especificidade das provas utilizadas, para estimar a probabilidade de falsos positivos e falsos negativos. O tipo de antígeno empregado pode interferir nos resultados. Quando se usam antígenos recombinantes, por exemplo, obtém-se alta especificidade, porém menor sensibilidade.

As limitações dos métodos parasitológicos e imunológicos convencionais levaram ao desenvolvimento de técnicas moleculares. Devido à alta sensibilidade e especificidade demonstradas, à capacidade de quantificar a carga parasitária e à possibilidade de empregar diversos tipos de amostras, essas técnicas tornaram-se cada vez mais relevantes como complemento ou alternativa no diagnóstico da leishmaniose. A reação em cadeia da polimerase (PCR) é uma ferramenta altamente sensível para detecção de fragmentos de DNA de Leishmania em diferentes amostras, como aspirados de linfonodos, medula óssea e soro, inclusive em fases iniciais da doença.

Além disso, a PCR é útil para detectar diversas espécies de Leishmania, algo importante em regiões com múltiplas espécies do parasita. A PCR convencional baseia-se no uso de primers específicos para amplificar regiões conservadas do genoma do parasita, com análise dos amplicons por eletroforese em gel de agarose. Embora mais sensível que métodos parasitológicos, a PCR convencional é principalmente qualitativa (presença/ausência de DNA), enquanto a PCR em tempo real (qPCR), além de identificar, permite quantificar o material genético amplificado. A PCR convencional também demanda mais tempo, pois requer etapas adicionais (como a eletroforese) e pode ter menor sensibilidade para pequenas quantidades de DNA.

A técnica LAMP (loop-mediated isothermal amplification) é um método inovador de amplificação de ácidos nucleicos capaz de amplificar pouquíssimas cópias de DNA com alta especificidade, eficiência e rapidez. LAMP é um método rápido e econômico, que não requer termociclador — características que o tornam adequado para diagnóstico em campo. Entre as vantagens estão alta sensibilidade e especificidade, rapidez e facilidade de uso; entre as desvantagens, a possibilidade de contaminação (que pode levar a falsos positivos).

Em alguns casos, a interpretação dos resultados LAMP pode ser complexa, especialmente em infecções mistas ou em animais com baixa carga parasitária. Um resultado positivo em LAMP apenas indica a presença do parasita, não necessariamente que o cão esteja doente. Os resultados podem ser obtidos em menos de uma hora, permitindo diagnóstico mais ágil que outras técnicas.

É importante considerar que, dependendo da fase da doença, pode não haver detecção de anticorpos séricos em cães infectados por Leishmania infantum. No início da infecção é mais provável encontrar PCR sanguínea positiva e ausência de anticorpos. Com o tempo, a presença de parasitas no sangue diminui, enquanto os níveis de anticorpos podem aumentar. Nessa etapa, é preferível realizar PCR em outros tecidos além do sangue.

O diagnóstico precoce e preciso da leishmaniose é fundamental não apenas para tratar adequadamente os pacientes, mas também para implementar estratégias eficazes de controle e prevenção. A melhoria nas abordagens diagnósticas permite identificar casos rapidamente. Além disso, um diagnóstico preciso ajuda a reduzir a transmissão do parasita, possibilitando intervenções focalizadas em áreas endêmicas.

Sobre o 50º WSAVA Congress – 2025 

  • 50º WSAVA Congress – 2025 
  • Data: 25 a 27 de setembro de 2025
  • Local: Riocentro
  • Endereço: Avenida Salvador Allende, 6555 – Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
  • Horário: das 10h00 às 18h30
  • Ingressos: 50° WSAVA Congress

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